terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

O CASAMENTO

O casamento, portanto — um problema. Tornou-se problemático neste tempo, como o resto. Nossos avós, felizardos, não entenderiam.
Já Wederkind (creio que em “Francisca”) observou friamente: “A diferença entre a vestimenta masculina e a feminina está em vias de desaparecer no mundo inteiro. Sem dúvida o homoerotismo, o laço de amor entre homens, a camaradagem sexual, encontra hoje um clima favorável. De fato, não há como censurar ou zombar de uma esfera de sentimentos que produziu o túmulo dos Médicis e de David, os Sonetos Venezianos e a Patética em Si Menor”.
Do ponto de vista abstrato-estético, um ponto de vista humano-generoso, emancipador, antiutilitário e, portanto, secretamente antinatural, nada pode ser aduzido contra esse gênero de sensibilidade. Onde prevalece a noção de beleza a vida deixa de imperar de modo absoluto. O princípio da beleza e da forma não se origina da esfera da vida. Sua relação com ela é, quando muito, de natureza estritamente crítica e corretiva. Ele se opõe à vida com orgulhosa melancolia, está profundamente ligado à idéia de morte e de esterilidade.
Platen diz: “Quem viu a beleza com os olhos / já foi confiado à morte”. Mas esses dois versos são a fórmula primeira e fundamental de todo o esteticismo. E com inteira razão pode-se chamar o homoerotismo de esteticismo erótico. Quem negará que com isso pronuncia-se seu julgamento moral? Nele não há bênção, exceto a da beleza. E esta é uma bênção de morte. A fidelidade é a imensa vantagem moral do amor natural possível no casamento, procriador.
A lei dos judeus, que sempre se entenderam sobre esses assuntos, punia com a morte os garotos que fossem juntos para a cama. Não se pode dizer o que veio primeiro: o casamento ou a fidelidade; e seria absurdo associá-los em pensamento com o homoerotismo. Tudo o que o casamento é, a saber, duração, fundamento, procriação, tudo isso o homoerotismo não é. E quanto à libertinagem estéril este é o oposto da fidelidade.
Com rara evidência aparece aqui que a virtude e a moralidade são questões de vida, nada além de um imperativo categórico, a ordem de viver; enquanto que todo esteticismo de natureza pessimista-orgiástica é a vocação da morte. Que toda arte inclina para isso, tende ao abismo, é absolutamente evidente. A liberdade orgiástica do individualismo que uma vez descrevi em Morte em Veneza na forma de pederastia. Parece-me que o artista é propriamente o mediador (irônico) entre os mundos da morte e da vida. Somos crianças-problema da vida, mas, ainda assim, crianças da vida, fundamentalmente destinadas ao bem moral.
Hegel disse que o caminho mais moral para o casamento é aquele em que a decisão de casar preceda ao desejo. De modo que com o casamento ambas finalmente se reúnam. Li isso com prazer, pois é o meu caso e é sem dúvida muito comum. O amor que leva ao casamento é o amor que funda. Ninguém se casa com uma mulher para possuí-la. A comunidade sexual trazida pelo casamento é algo essencialmente diferente e mais suscetível de espiritualização do que aquele para cuja realização não é necessário casar. Deve ser essa a diferença que confere ao casamento seu caráter de eterno-humano. Mas o eterno-humano é capaz de transformação.
Mas o pior e mais falso é a restauração. A época que teme a si própria enche-se de desejo de restaurar, de veleidades de retorno, de restabelecimento do velho e do venerável, de restabelecimento da santidade perdida. Inútil. Não há volta.

Thomas Mann

Nenhum comentário:

Postar um comentário

LinkWithin

Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...