quinta-feira, 21 de outubro de 2010

ATEÍSMO E CIDADANIA


Li o artigo, adiante transcrito, no blog do Antônio Cícero, o qual, aliás, recomendo, e resolvi postá-lo aqui também por considerá-lo de utilidade pública. Num Estado laico não há espaço para esse tipo de preconceito. Os ateus e agnósticos merecem respeito. Infelizmente, políticos acabam por adotar práticas preconceituosas a fim de agradar a grupos religiosos e garantir suas candidaturas. É lamentável que questões religiosas sejam levadas para o debate político, ocupando espaço de assuntos mais relevantes no cenário nacional como, por exemplo, a criação de empregos, o estímulo à educação e o combate à corrupção generalizada nas esferas do poder.

O texto a seguir é de autoria de Daniel Sottomaior, presidente da Atea (Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos), cujo endereço eletrônico é http://www.atea.org.br/, e foi publicado na Folha de São Paulo, na quarta-feira, 19 de outubro.

ATEÍSMO E CIDADANIA
Daniel Sottomaior


No Brasil atual, é inimaginável um senador da República dizer que "tem pena" de judeus. Ou um apresentador de TV afirmar repetidas vezes que certo criminoso "só pode ser negro". Ou um candidato à Presidência afirmar que o judaísmo tem criado problemas no Brasil e no mundo e que é bom que o próximo mandatário supremo não seja judeu.

Ou um vilão de novela ser gay e atribuir sua maldade à própria homossexualidade.

No entanto, esse é o país em que vivem cerca de 4 milhões de ateus -número aproximado, já que o IBGE nos nega essa informação, a despeito do art. 5º da Constituição: "Ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica".

Todos esses casos são reais, referindo-se na verdade a ateus, mas ninguém foi destituído, despedido ou processado pelo Ministério Público. Por que será?

A Folha dá enorme passo na direção certa ao abrir espaço a esta resposta ao artigo "Dilma e a fé Cristã", de Frei Betto ("Tendências/Debates", 10/10). Nele, o dominicano afirmou: "Nossos torturadores, sim, praticavam o ateísmo militante ao profanar, com violência, os templos vivos de Deus: as vítimas levadas ao pau de arara, ao choque elétrico, ao afogamento e à morte".

Não há como salvar essa lógica.

Trata-se de expressão clara de preconceito. Se a frase é inaceitável referindo-se a judaísmo ou negritude, então o mesmo deve valer para o ateísmo. E o contexto não poderia ser pior: o mote do artigo é salvar a candidata de "acusações" de ateísmo, ao invés de mostrar que ateísmo não é matéria de acusação em sociedade não discriminadora.

Identificar grupos de pessoas a deficiência física, estética, mental, moral ou até teológica sempre foi a racionalização do discriminador.

A maldade dos ateus é mais uma dessas lendas preconceituosas, reafirmada "ad nauseam" pela sacrossanta Bíblia Sagrada e por quase todos os seus cristianíssimos seguidores, apesar de desautorizada por todos os dados disponíveis.

A Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea) vem congregando descrentes em todos os quadrantes do país, esclarecendo a sociedade, defendendo os ateus da posição inferior que nos querem impingir, lutando por um Estado verdadeiramente laico e levando aos tribunais as pessoas e instituições que insistem no contrário.

Isso, sim, é ateísmo militante.

Ironicamente, bulas papais como "Ad extirpanda" e "Dum diversas" deixam claro que o cristianismo militante inclui tortura e escravização de descrentes. Não consta que tenham sido revogadas.

O grande manual de tortura de todos os tempos, "Malleus Maleficarum", foi escrito também por dominicanos, e serviu de guia, durante séculos, para a violência católica contra infiéis.

No caso a que Frei Betto se refere, os papéis também estão invertidos: combater o ateísmo era uma das justificativas para a ditadura, sintomaticamente inaugurada com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade.

É o teísmo militante, naquela época como hoje, alimentando-se do preconceito escancarado contra ateus, sequestrando e engravidando a política, em nome dos bons tempos, para nela conceber seus frutos. Vejam só no que deu.


Um comentário:

  1. É natural que depois de quase dois milênios de crudelíssima imposição o ateísmo esteja em ebulição e os religiosos indignados, reagindo de todo jeito porque o cristianismo nunca foi democrático a despeito de ser inconfessadamente grego. A retórica religiosa procura se aprimorar para enfrentar o desafio da era da comunicação sem perceber que o grande adversário da crença é o tempo. Não posso falar das vantagens de um mundo ateu porque ainda não conhecemos este mundo. No entanto, podemos e devemos falar das desvantagens de um mundo religioso porque a história nos faculta isso. O escritor Pedro Nava dizia que a experiência é como um farol voltado pra trás. Só ilumina o que já passou. É assim mesmo que a humanidade caminha e procura na escuridão cósmica por uma sorte melhor. Nem só na filosofia se apóia o ateísmo. O cultuado e louvado deus da bíblia era execrado nos primeiros séculos e até comparado ao diabo. Não havia Deus, havia Zeus, o todo poderoso. Desde quando a teologia se transformou na engenharia da enganação, a idéia do divino começou a se complicar. Essa discussão idiota não existia na Antiguidade porque esse tipo de ignorância era levado mais a sério. Está faltando seriedade no trato deste assunto por causa de interesses menores. Tal percepção era clara e não cabia dúvida quanto a sua existência, tanto quanto não nos cabe dúvida quanto a nossa própria existência. Fazemos parte do contexto de uma inteligência maior e mais abrangente do que a nossa imaginação. Albert Einstein diferenciava o deus cultural de Israel, o da bíblia, da inteligência cósmica, da qual não fazemos idéia. Também, ninguém de nós sabe o que na verdade é o judaísmo; mas os gregos antigos da elite o repudiavam. Os movimentos religiosos reativos e sob influência grega condenavam o deus dos judeus como o malévolo criador da humanidade. Para aqueles, tal criação foi um grande mal. Por incrível que pareça, foi dessa rixa ou desse confronto cultural que surgiu o cristianismo; uma história ainda mantida convenientemente sob a névoa das discussões estéreis. Sou ateu porque conheço o bastante desta história para negar a existência do deus cultural de Israel e a farsa de Jesus Cristo. Simples assim. As transformações estão só começando.

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