quinta-feira, 16 de setembro de 2010

GANHEI CORAGEM

Com a proximidade das eleições, circulam na internet muitas informações a respeito de candidatos e até mesmo sobre a deficiência do próprio sistema, época em que recebemos muitos e'mails apontando escândalos envolvendo candidaturas.



Recentemente, recebi por e'mail um texto de Rubem Alves, cujo título é Ganhei Coragem, publicado em 05/05/2002, na Folha de São Paulo. Como gostei muito do que li resolvi  publicar neste espaço a íntegra da crônica, a qual foi extraída da página de seu autor - A Casa de Rubem Alves

Um grande abraço a todos e até a próxima.





GANHEI CORAGEM


“Mesmo o mais corajoso entre nós só raramente tem coragem para aquilo que ele realmente conhece“, observou Nietzsche. É o meu caso. Muitos pensamentos meus, eu guardei em segredo. Por medo. Albert Camus, ledor de Nietzsche, acrescentou um detalhe acerca da hora quando a coragem chega: “Só tardiamente ganhamos a coragem de assumir aquilo que sabemos“. Tardiamente. Na velhice. Como estou velho, ganhei coragem. Vou dizer aquilo sobre que me calei: “O povo unido jamais será vencido“: é disso que eu tenho medo.

Em tempos passados invocava-se o nome de Deus como fundamento da ordem política. Mas Deus foi exilado e o “povo“ tomou o seu lugar: a democracia é o governo do povo... Não sei se foi bom negócio: o fato é que a vontade do povo, além de não ser confiável, é de uma imensa mediocridade. Basta ver os programas de televisão que o povo prefere.

A Teologia da Libertação sacralizou o povo como instrumento de libertação histórica. Nada mais distante dos textos bíblicos. Na Bíblia o povo e Deus andam sempre em direções opostas. Bastou que Moisés, líder, se distraísse, na montanha, para que o povo, na planície, se entregasse à adoração de um bezerro de ouro. Voltando das alturas Moisés ficou tão furioso que quebrou as tábuas com os 10 mandamentos. E há estória do profeta Oséias, homem apaixonado! Seu coração se derretia ao contemplar o rosto da mulher que amava! Mas ela tinha outras idéias. Amava a prostituição. Pulava de amante a amante enquanto o amor de Oséias pulava de perdão a perdão. Até que ela o abandonou... Passado muito tempo Oséias perambulava solitário pelo mercado de escravos... E que foi que viu? Viu a sua amada sendo vendida como escrava. Oséias não teve dúvidas. Comprou-a e disse: “Agora você será minha para sempre...“ Pois o profeta transformou a sua desdita amorosa numa parábola do amor de Deus. Deus era o amante apaixonado. O povo era a prostituta. Ele amava a prostituta. Mas sabia que ela não era confiável. O povo sempre preferia os falsos profetas aos verdadeiros, porque os falsos profetas lhes contavam mentiras. As mentiras são doces. A verdade é amarga. Os políticos romanos sabiam que o povo se enrola com pão e circo. No tempo dos romanos o circo era os cristãos sendo devorados pelos leões. E como o povo gostava de ver o sangue e ouvir os gritos! As coisas mudaram. Os cristãos, de comida para os leões, se transformaram em donos do circo. O circo cristão era diferente: judeus, bruxas e hereges sendo queimados em praças públicas. As praças ficavam apinhadas com o povo em festa, se alegrando com o cheiro de churrasco e os gritos. Reinhold Niebuhr, teólogo moral protestante, no seu livro O homem moral e a sociedade imoral observa que os indivíduos, isolados, têm consciência. São seres morais. Sentem-se “responsáveis“ por aquilo que fazem. Mas quando passam a pertencer a um grupo, a razão é silenciada pelas emoções coletivas. Indivíduos que, isoladamente, são incapazes de fazer mal a uma borboleta, se incorporados a um grupo, tornam-se capazes dos atos mais cruéis. Participam de linchamentos, são capazes de pôr fogo num índio adormecido e de jogar uma bomba no meio da torcida do time rival. Indivíduos são seres morais. Mas o povo não é moral. O povo é uma prostituta que se vende a preço baixo. Meu amigo Lisâneas Maciel, no meio de uma campanha eleitoral, me dizia que estava difícil porque o outro candidato a deputado comprava os votos do povo por franguinhos da Sadia. E a democracia se faz com os votos do povo... Seria maravilhoso se o povo agisse de forma racional, segundo a verdade e segundo os interesses da coletividade. É sobre esse pressuposto que se constrói o ideal da democracia. Mas uma das características do povo é a facilidade com que ele é enganado. O povo é movido pelo poder das imagens e não pelo poder da razão. Quem decide as eleições – e a democracia - são os produtores de imagens. Os votos, nas eleições, dizem quem é o artista que produz as imagens mais sedutoras. O povo não pensa. Somente os indivíduos pensam. Mas o povo detesta os indivíduos que se recusam a ser assimilados à coletividade. Uma coisa é o ideal democrático, que eu amo. Outra coisa são as práticas de engano pelas quais o povo é seduzido. O povo é a massa de manobra sobre a qual os espertos trabalham. Nem Freud, nem Nietzsche e nem Jesus Cristo confiavam no povo. Jesus Cristo foi crucificado pelo voto popular, que elegeu Barrabás. Durante a Revolução Cultural na China de Mao-Tse-Tung, o povo queimava violinos em nome da verdade proletária. Não sei que outras coisas o povo é capaz de queimar. O nazismo era um movimento popular. O povo alemão amava o Führer. O mais famoso dos automóveis foi criado pelo governo alemão para o povo: o Volkswagen. Volk, em alemão, quer dizer “povo“...

O povo unido jamais será vencido! Tenho vários gostos que não são populares. Alguns já me acusaram de gostos aristocráticos... Mas, que posso fazer? Gosto de Bach, de Brahms, de Fernando Pessoa, de Nietzsche, de Saramago, de silêncio, não gosto de churrasco, não gosto de rock, não gosto de música sertaneja, não gosto de futebol (tive a desgraça de viajar por duas vezes, de avião, com um time de futebol...). Tenho medo de que, num eventual triunfo do gosto do povo, eu venha a ser obrigado a queimar os meus gostos e engolir sapos e a brincar de “boca-de-forno“, à semelhança do que aconteceu na China.

De vez em quando, raramente, o povo fica bonito. Mas, para que esse acontecimento raro aconteça é preciso que um poeta entoe uma canção e o povo escute: “Caminhando e cantando e seguindo a canção...“ Isso é tarefa para os artistas e educadores: O povo que amo não é uma realidade. É uma esperança.

5 comentários:

  1. AMIGO,

    QUE POSTAGEM LEGAL, CARAMBA, HOJE TENHO ASSUNTO PARA CONVERSAS O FRESTO DA SEMANA E AINDA DÁ PARA SEMANA QUE SE APROXIMA.
    MUITO BEM ORGANIZADA E O MELHOR DE TUDO, É QUE ENQUANTO LEMOS, PENSAMOS EM NOSSAS VIDAS, E FAZEMOS UMA PERGUNTA, PELO MENOS EU FIZ ESTA PERGUNTA PARA MIM MESMO?
    COMO SERÁ QUE SOU VISTO PELOS OUTROS QUE ME CERCAM?
    PODE PARECER DESCABIDA, MAS FOI O QUE ME FEZ SENTIR E PENSAR, LÓGICO, COM UM MONTE DE OUTRAS COISAS, MAS O TEMA ME ESTIMULOU A QUERER SABER ISSO.

    UM GRANDE ABRAÇO.

    UM ÓTIMO DIA.

    FÁBIO LUÍS STOER

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  2. Gosto muito dos textos de Rubem Alvez.No momento estou lendo o livro "Conversas com quem gosta de ensinar", e a cada página é uma surpresa e um soco e um carinho, desses de quem tem coragem de falar verdades.

    E este texto que você nos presenteia veio em bom momento. Tempos difíceis esses... Saber quem somos, saber o que queremos, olharmos para nós mesmos como como indivíduos, como povo... aiai... difícil...

    Parabéns pelo seu espaço, David. Cada dia mais bonito!

    bjs!

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  3. Obrigado Fábio e Isabele pelo carinho e por privilegiarem este espaço com os seus argutos comentários.
    Um forte abraço

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  4. Adorei teu espaço David. Passo a segui-lo.

    Abraço

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  5. Obrigado, Michele. Seja bem vinda a este espaço.

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